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sábado, 9 de março de 2013

A Serra Gaúcha que eu conheci 3



A realidade do campo

O perfil acentuado de minifúndio que vigorava (e ainda vigora) na Serra me colocou de imediato numa realidade totalmente diferente da que conhecia de Mendoza.
As propriedades eram pequenas e toda a família colaborava desempenhando diferentes tarefas. A geografia era íngreme, o que impedia a mecanização e por isso tive meu primeiro contato com a “junta de bois” com os quais os agricultores aravam e tratavam a terra. A “colônia” era uma preciosa reserva cultural onde a gastronomia, costumes e uso do dialeto constituíam um pequeno rincão do Vêneto italiano.

Até hoje recordo o Sr. Cavazza, italiano diretor técnico da Martini da França que ao visitar uma festa colonial ficou emocionado e me disse baixinho, “estas canções não se ouvem mais na Itália. Isto é um tesouro”.

Esta situação permanece pouco alterada para algumas famílias e por isso a necessidade de preservar esta cultura apoiando o pequeno agricultor, o pequeno produtor de vinhos já que constituem o verdadeiro patrimônio cultural da região.

Para adquirir uvas era necessário contatar um importante número de produtores e isso exigia conhecer cada um deles, sua propriedade, suas uvas e sua forma de trabalhar.
Para esta tarefa contratamos uma “prata da casa”, Osvaldo Fillipon, pessoa experiente que tinha trabalhado na Cooperativa Garibaldi e que conhecia como ninguém a idiossincrasia da região. Osvaldo se transformou ao longo dos anos na ponte entre nossa vinícola e o produtor, confiável, amigo, preocupado em oferecer um bom serviço à empresa sem desproteger o “colono”.

É importante lembrar que no inicio dos anos setenta existia uma oferta relativamente limitada de uvas viníferas sendo que o patrimônio varietal da época era predominantemente de origem italiano. As tintas eram Barbera, Bonarda, Canaiolo e Cabernet Franc e as brancas Riesling Itálico, Moscato, Peverella e Trebbiano.

A primeira surpresa que tivemos foi descobrir que existiam duas uvas chamadas Riesling, a “verdadeira” e a “falsa”. Os preços variavam conforme o volume da safra: quando faltava uva os preços se igualavam, quando sobrava, o preço da falsa era menor. Na primeira prova de vinificação verificamos que os vinhos não eram iguais, um mais elegante, mais refinado, mais harmônico, o outro era bastante frutado mais de curto ciclo maturando aceleradamente, mais “verde”, mais grosseiro. Pesquisando chegamos a conclusão que a falsa era a hibrida produtora direta branca Seyve Villard e passamos a chama-la por seu verdadeiro nome, pagar o preço justo e a destinamos a base vermute.

Entre as barberas e bonardas havia uma mistura impossível de decifrar. A solução foi o inicio imediato da propagação de material importado de novas variedades junto aos produtores. Para tal fim importamos mudas enxertadas das variedades Cabernet franc, Merlot, Semillón, Riesling renano e Pinot Noir seguidas de Cabernet Sauvignon e Chardonnay.
Estas últimas chegaram no inicio dos anos oitenta.

Como todas as mudas eram originárias da França os viveiros dispunham de plantas enxertadas sobre o cavalo mais utilizado lá que era o SO4 (Teleki 4 Sel. Oppenheim) originário da Alemanha. Este cavalo se mostrou (uma década depois) muito sensível a algumas doenças e ao excesso de umidade, por isso algumas mudas importadas nos primeiros anos tiveram problemas e morreram.

A falta de experiência e conhecimento de campo nos levou a este tipo de erro e infelizmente em viticultura para corrigi-lo leva de 8 a 10 anos. Outros cavalos foram solicitados posteriormente como Paulsen 1103 e 101.14.

Por esta razão me chama muito a atenção quando algumas vinícolas, magicamente, declaram antecipadamente logo após o plantio de algumas uvas que delas sairão vinhos ícones, prêmium, super premium, premio Nobel, etc.

É o marketing agressivo que impõe inverdades, conceitos errados que levam o consumidor ao engano. Isto deve ser combatido.

O controle da produção

Não existiam critérios técnicos para produzir uvas finas e os agricultores acostumados a cultivar uvas americanas, exageravam na produção como forma de compensar os baixos preços praticados. Na época a uva não estava enquadrada na Política de Preços Mínimos e os mesmos eram definidos pelas maiores compradoras: Cooperativa Garibaldi, Vinícola Riograndense e Dreher que produzia em Bento Gonçalves o conhaque com o mesmo nome feito com vinhos de americanas.

Iniciamos o Cadastro de Propriedade de cada um dos fornecedores que chegou rapidamente a 350 produtores. Uma equipe (da qual formou parte entre outros, Adriano Miolo que era estagiário) foi a campo a levantar:

- Área total da propriedade
- Área de vinhedos, área por variedade, área por talhão.
- Área de terra disponível para ampliar cultivo.
- Número de pés por variedade e por talhão.
- Tipo e origem do cavalo, enxerto ou muda.
- Ano de plantio por variedade e talhão.
- Identificação de pés sadios e suspeitos de viroses.

Desta forma levantamos a produtividade por pé já que o total por hectare é relativa porque o importante é quanto produz cada pé, o total de área produzindo por produtor, região e variedade.
Como foi levantada a origem o material vegetativo foi possível depois conferir a qualidade da uva e relaciona-la a esses dados.
Tudo isto parece excessivo mas foi a única forma que encontramos para dispormos de dados confiáveis que permitissem atuar efetivamente nas mudanças a serem feitas para melhorar a qualidade da matéria.

Não tenho dúvidas que a De Lantier na década de oitenta chegou a ter a cantina mais moderna e versátil do Cone Sul com prensas pneumáticas (as primeiras que chegaram ao Brasil), desengaçadeiras especiais, filtros, reservatórios de aço inox com controles, maceradores rotativos automáticos (o equipamento perfeito para extrair cor delicadamente), etc.

DE NADA ADIANTAVAM OS RECURSOS TECNOLÓGICOS SE A MATÉRIA PRIMA NÃO ERA ADEQUADA A ESSES AVANÇOS.
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Como resultado do esforço em campo associado a uma política de preços que estimulava a qualidade, estado sanitário e a justa maturação das uvas foi possível estabelecer uma parceria confiável com os agricultores com os quais mantínhamos uma relação de confiança, sem contratos, sem cláusulas. Era no fio do bigode, mesmo.

Como resultado desta parceria confiável conseguimos elaborar um vinho tinto magnífico como foi o Baron de Lantier, primeiro vinho tinto a ganhar medalhas em concursos internacionais (quando ainda eram confiáveis). Não tenho dúvidas que apesar de nunca termos tido o atrevimento de chama-lo assim, o Baron de Lantier foi um ícone da época.

Infelizmente por razões diversas este vinho não existe mais. Foi assassinado pelas circunstâncias.

Uma perda irreparável para o setor.

2 comentários:

Nilson disse...

Maravilha!

Arlete Arok disse...

Um depoimento precioso para nossa história vinícola!