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segunda-feira, 6 de abril de 2020

Um pequeno detalhe




Resgatar a história muitas vezes corrige informações, amplia conhecimentos e ajuda a reestabelecer a verdade.

Poucas pessoas sabem o imenso esforço que fizeram as vinícolas que surgiram na década de setenta, muitas delas “braços vinícolas” de grandes organizações internacionais.

Dou como exemplo a Casa Vinícola De Lantier da Martini & Rossi, a Maison Forestier da Seagrams e a Provifin do grupo formado pela Monteiro Aranha, a Cinzano e a Möet & Chandon francesa.

Estas novas empresas, que tinham como principal ferramenta a excelente rede de distribuição espalhada pelo imenso território brasileiro, buscavam produzir vinhos e espumantes de alta qualidade porque sabiam do potencial de consumo que existia.

Logo perceberam que a oferta de uvas seria o principal obstáculo para esse objetivo.
Pouquíssimas variedades apropriadas para vinhos finos e as que existiam, eram produzidas sem controle nenhum da qualidade e da quantidade.

As características geográficas da região impediam a formação de grandes vinhedos por isso a única fonte da oferta eram os milhares de pequenos produtores espalhados pelos municípios de Bento Gonçalves, Farroupilha e Garibaldi, principalmente.

Com uma área média de 2 hectares, as propriedades familiares produziam uma boa parte de uvas “comuns” da espécie americana, mais resistentes ao clima úmido que predominava e com alta produtividade, e também em menor quantidade, mas cultivadas da mesma forma, algumas variedades da espécie europeia, apropriadas para vinhos finos. As que mais se destacavam eram Riesling Itálico, Trebiano, Peverella e Moscato entre as brancas e Barbera, Bonarda, Canaiolo, Merlot e Cabernet Franc entre as tintas.

Todas as empresas chegaram à conclusão que era necessário realizar, de imediato, um trabalho de introdução e adaptação de novas variedades.
Foi feito levantamento das áreas de ampliação nas propriedades dos produtores para introdução destas castas.

Foram procurados os fornecedores estrangeiros (principalmente italianos e franceses) que dispusessem de mudas enxertadas.

Como todos devem saber, existem dois tipos de material para cultivo, o pé franco, que é a estaca da variedade escolhida, e a muda que é uma planta enxertada e formada por duas “partes”. A parte que será responsável pela área radicular, chamada localmente de “cavalo”, deve ser resistente a filoxera e por isso é da espécie americana. A parte correspondente á área superior, formará a copa, os galhos e os frutos.

Esta segunda parte, que é enxertada na primeira, pertence a variedades escolhida, Merlot, Cabernet Franc, etc.
A escolha do “cavalo”ou porta-enxerto é muito importante porque tem de ser apropriado as condições de clima e solo da região do vinhedo.

Na figura abaixo, mostramos que o surgimento da "muda enxertada" foi para combater a doença que quase disseminou os vinhedos do mundo em fins do século XXIX, chamada filoxera.
Este inseto atacava a parte radicular das plantas da espécie europeia mas não a da especie americana. As plantas de pe franco, por tanto, eram atacadas e morriam. Após longos estudos chegou-se a conclusão que utilizando a parte radicular da especie americana e a parte aérea da especie europeia, obtinha-se uma planta resistente. Nascia nesse momento a muda enxertada hoje utilizada em todo o mundo.

A realidade é que as condições da serra são totalmente diferentes da maior parte das regiões europeias, em especial em relação aos índices pluviométricos, bem mais altos no Brasil.

Os viveiros com potencial para entregar as grandes quantidades que precisavam as novas vinícolas, possuíam material vegetativo garantido livre de vírus ou doenças, próprio para as condições europeias e não haveria tempo para estudos ou maiores testes. Era importante trazer material e começar o cultivo.



O cavalo mais utilizado devido a sua boa adaptação às variedades mais procuradas como Cabernet Franc, Merlot, Pinot Noir, Chardonnay e Sauvignon Blanc, era o chamado SO4 (Seleção Oppenheim #4) e por esta razão as mudas foram adquiridas sobre este porta-enxerto.

Um dos problemas deste porta—enxerto è sua baixíssima resistência a uma doença fúngica chamada Fusariose, que ataca o sistema vascular da planta, causando a queda forte de produtividade e até a morte da mesma. A planta vai secando parte do sistema vascular por onde circula a seiva e com o tempo morre (ver foto no titulo).

A Fusariose acha seu habitat ideal em solos úmidos ou pouco drenados e com altos teores de matéria orgânica ou nitrogenada. Justamente uma condição frequente em algumas propriedades.

Um detalhe que contribuiu para a expansão da doença foi o uso indiscriminado de adubo orgânico, o chamado “cama de aviário”.
A região de Garibaldi, Bento e Farroupilha se caracteriza também pela criação de frango e nos aviários, periodicamente, é retirado o esterco acumulado e entregue a quem quiser levar.

Os produtores, devido ao efeito imediato de aumento da área vegetativa nas vinhas, eram clientes assíduos contribuindo, sem saber, para a morte das plantas devido a Fusariose.

Lembro que uma vez, num encontro entre enólogos, um integrante da Secretaria da Agricultura me disse: “Lona, o cocô da galinha vai acabar com nossos vinhedos”. Confesso que nessa hora pensei que estava brincando comigo...e não estava.

A Fusariose, que se manifesta na planta adulta, ficou oculta durante a fase de crescimento e ocasionou alguns longos anos de atraso na renovação dos vinhedos.

Imediatamente foram buscados novos porta-enxertos como Paulsen 1103, 101-14 e outros, mas a oferta era limitada e isto ocasionou também atraso.

Quando se inicia um projeto vitivinícola, sabe-se que a produção de uvas e a comercialização representam os maiores desafios. Um pelo tempo e risco, o outro pela dificuldade de enfrentar um imenso mercado extremamente competitivo.

Montar uma cantina requer um bom projeto e recursos. Para produzir uvas e vender o vinho não bastam projetos e recursos.

O título deste artigo, “Um pequeno detalhe” mostra quanto é complexo o processo de renovação e aumento da produção vitícola. Hoje os vinhedos novos, já em espaldeira, enfrentam menores riscos em relação à escolha do material vegetativo.

A experiência ganha nos anos setenta e oitenta foi fundamental.

Por isso é importante dar o devido valor a toda a contribuição aportada por estas vinícolas da época.

Minhas homenagens!










Um comentário:

Fernando Carvalho disse...

Parabéns, Adolfo Lona. Você é um enólogo de verdade. Enólogo conivente com a "chaptalização" é um profissional fuleiro.